A Gestão da Qualidade na Indústria Vitivinícola
Olga Laureano e Jorge Ricardo da Silva (Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa).
A competitividade do sector produtivo depende, em grande parte, da qualidade dos produtos e serviços, constituindo um factor relevante no delineamento dos planos estratégicos das empresas. A «política da qualidade» compreende, entre outras actuações, a definição do conjunto de características (especificações) a que o produto deve obedecer. As especificações de produto deverão ser conhecidas a priori e reconhecidas pelos respectivos utilizadores. A fim de assegurar os atributos de qualidade no produto final (e/ou prevenir a sua ausência), as empresas estabelecem responsabilidades, procedimentos, métodos e recursos, cujo conjunto constitui o chamado sistema de garantia da qualidade. Tais acções visam assegurar a fiabilidade da «qualidade» perante os utilizadores, isto é, estabelecer confiança nos clientes.
A política da qualidade e a consequente gestão da qualidade é, portanto, um dos aspectos fulcrais no desenvolvimento e no sucesso das empresas. A noção de «qualidade» tem tido ao longo do tempo percepções e conteúdos diferentes, encerrando em si alguma ambiguidade. A definição de qualidade, hoje correntemente aceite, baseia‑se na Norma ISO‑8402‑1994, que define «qualidade» como «o conjunto de características de um produto que lhe confere aptidão para satisfazer as necessidades explícitas e as implícitas». No domínio agro‑alimentar, em particular no dos vinhos, as necessidades implícitas correspondem às exigências regulamentares, como as referentes à segurança alimentar, controlo de adulterações, etiquetagem, etc., enquanto as necessidades explícitas são mais dependentes de cada indivíduo e podem cobrir diferentes noções.
Frequentemente, considera‑se que a qualidade dos vinhos, bem como a de outros alimentos, obedece a quatro vectores principais – os 4 S:1) a Segurança, correspondendo aos aspectos higiénicos e toxicológicos; 2) a Saúde, correspondendo aos aspectos nutricionais; 3) o Serviço, relacionado com a facilidade de utilização, apresentação, conservação; 4) a Satisfação que corresponde às características mais evidentes para o consumidor e estão, em geral, relacionadas com os atributos sensoriais. Assim, a qualidade de um vinho será resultante de um conjunto de características reveladas pelas suas propriedades, e mensuráveis através da análise física, química, microbiológica e ainda da análise sensorial descritiva. Cada propriedade e/ou atributo terá uma determinada «dimensão» que, no seu conjunto, constitui o perfil, o «estilo de vinho» a definir pela empresa, em função da sua estratégia de mercado.
A listagem das características que são importantes e/ou fundamentais medir assenta em dois critérios principais: por um lado, assegurar a defesa do consumidor (em relação, por exemplo, à segurança do produto e à sua genuinidade); por outro, as características definidas pela empresa e relacionadas com o estilo do vinho. Estas características corresponderão respectivamente às especificações legais e às especificações comerciais.
Os Estados, desde sempre e como lhes compete, têm procurado estabelecer a lista das especificações legais a que o vinho tem de obedecer. Estas listas são frequentemente baseadas no parecer de Organizações Internacionais, de cariz intergovernamental, como a FAO/OMS – através do Codex Alimentarius ou a Organisation International de la Vigne et du Vin, a que Portugal pertence desde a sua fundação. Este organismo (O. I. V.), nomeadamente através da sua Sub‑comissão de Métodos de Análise e Apreciação de Vinhos, tem por missão: 1) dar parecer sobre as quantidades limite de certos elementos que compõem o vinho; 2) desenvolver os estudos com vista a completar e actualizar as definições e os métodos de análise de vinhos; 3) redigir as instruções técnicas.
O avanço e aprofundamento do conhecimento, ocorrido ao longo dos anos, fez com que o conjunto de especificações exigidas tenha vindo a ser alargado, o que certamente poderá conduzir a uma maior confiança, por parte dos consumidores, no produto apresentado; também a metodologia de quantificação, ou seja, os métodos de análise usados têm evoluído muito significativamente, podendo‑se hoje quantificar compostos cuja concentração é da ordem do micrograma, ou mesmo nanograma, a par de um grande aumento na especificidade e sensibilidade dos métodos e na fiabilidade dos resultados.
Assim, e apenas como exemplo na área na defesa do consumidor, hoje podemos detectar e quantificar quantidades vestigiais de metais pesados (como o chumbo, o mercúrio, o cádmio, etc.), graças à utilização da Absorção Atómica sem chama. Rastreios efectuados por equipas nacionais (entre outras, da Estação Vitivinícola Nacional/ /INIAP) permitem afirmar a conformidade dos vinhos portugueses quanto a estes compostos. Para além dos aspectos relacionados com a segurança alimentar, também se pode assegurar a genuinidade do vinho em relação a adulterações, como o adelgaçamento e o enriquecimento sacarino, graças à utilização de metodologias de análise baseadas na ressonância magnética nuclear (R. M. N.). Em Portugal, estas técnicas estão implantadas, com esse fim, no Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial. Estamos, de facto, muito longe dos velhos índices globais (extracto seco, cinzas, cloretos, sulfatos) que pouco ou nada comprovam em termos de genuinidade.
Contudo, gostaríamos ainda de sublinhar que, para além da quantificação das características do produto final (legais e comerciais), a que nos temos vindo a referir, a gestão da qualidade começa na implantação do vinhedo e vai até ao consumo final. O papel da análise físico‑química é fundamental em todas as fases do processo, nomeadamente para apreciar a qualidade potencial da vindima/estudo da maturação; vigiar a fermentação; caracterizar o vinho; apreciar a estabilidade do vinho e o efeito de tratamentos.
Esta realidade tem vindo a ser compreendida e assumida pelas principais empresas do sector vitivinícola português, pois, como é evidente, o vinho só poderá ter as características para que foi desenhado, se os procedimentos e os processos ao longo da linha de fabrico forem adequadamente controlados. O número de amostras a analisar, consequentemente, aumentou, tendo‑se assistido, por isso, à crescente utilização, por parte das empresas, dos métodos automáticos de análise. Entre estes, os métodos baseados no espectro de infravermelhos do vinho (FTIR), dado o seu baixo custo de funcionamento, o grande número de amostras e o leque de parâmetros que analisam, são bastante utilizados pela Indústria Vitivinícola portuguesa, apesar do seu custo de investimento.
A capacidade competitiva também assenta na diferenciação e «personalidade/carácter» dos vinhos. A singularidade das nossas variedades, aliada ao ecossistema em que frutificam, são, no nosso entender, um poderoso instrumento para essa diferenciação. A composição fenólica e aromática das castas portuguesas (grupos de compostos fundamentais na diferenciação dos vinhos) tem vindo a ser progressivamente melhor conhecida, graças à utilização de métodos de cromatografia gás‑líquido (GC) e cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC), acoplados a detector de massa (MS). Equipas de várias universidades portuguesas (como o Sector de Enologia do Instituto Superior de Agronomia/Universidade Técnica de Lisboa, a Escola Superior de Biotecnologia/Universidade Católica Portuguesa, a Faculdade de Ciências/Universidade do Porto, Departamento de Química da Universidade de Aveiro e Universidade do Minho) têm aprofundado o conhecimento sobre os perfis antociânicos, tânicos e aromáticos dos vinhos e castas portuguesas.
Para uma gestão da qualidade eficiente, dispõe‑se hoje, em Portugal, de instrumentos tecnológicos muito potentes, como pensamos ter evidenciado.
Contudo, qualquer actividade neste domínio terá que assentar em quadros técnicos altamente qualificados e com competências adequadas, de modo a permitir um desenvolvimento sustentado e com sucesso face à actual competitividade internacional.