Contribuição da Biotecnologia para o Melhoramento da Videira em Portugal
Figueiredo, A.; Cardoso, H.; Pais, M. S. (Unidade de Biologia Molecular e Biotecnologia de Plantas, ICAT, Univ. de Lisboa, Faculdade de Ciências de Lisboa).
A cultura da videira é uma actividade de importância mundial, com grande relevância económica em Portugal. No ano de 2005, o rendimento associado à produção de vinho em Portugal atingiu valores de 800 M€.
Esta cultura é assolada por diversos patogéneos, nomeadamente fungos como Botrytis cinerea Pers.: FR, agente causador da doença designada por podridão cinzenta, que afecta folhas, ramos, inflorescências e bagos. Esta doença tem um grande impacto económico a nível mundial, visto ser responsável por uma grande quebra de produção (Coley‑Smith et al., 1980). Nos principais factores que afectam a susceptibilidade da videira ao Botrytis cinerea incluem‑se o estado hídrico do solo, a humidade atmosférica elevada e a distribuição das raízes no solo. Esta doença é particularmente agressiva após um forte ataque por Plasmopara viticola ou por Uncinula necator. Em Portugal, a primeira referência ao Botrytis cinerea surge em 1790 (Amaro, 1980).
O fungo oomycete Plasmopara viticola (Berk. et Curt.) Berl. et de Toni, agente do míldio das Vitaceae, originário da América do Norte, foi introduzido na Europa, em 1878, juntamente com material de propagação de estacas de videiras americanas (Galet, 1977), tendo sido referenciado em Portugal em 1881 (Amaro, 1980). Na Europa ocidental, o míldio encontrou condições ambientais favoráveis ao seu desenvolvimento e um hospedeiro adequado, uma vez que a videira europeia, ao contrário da americana, evoluiu sem contacto com Plasmopara viticola, pelo que apresenta elevada susceptibilidade ao ataque por este patogéneo. Foi, por isso, considerada, por alguns autores, como a doença mais importante da videira (Kortekamp et al. 1998; Dai et al., 1995; Wong et al., 2001).
Originário do continente americano, o fungo Uncinula necator (Schw.) Burr., causador do oídio das Vitaceae, surgiu no continente europeu em 1845 (Costa e Tomaz, 1962). Em Portugal Continental, os primeiros focos de oídio surgiram em 1851, nos arredores de Lisboa, de onde progrediu para zonas produtoras de vinho, principalmente aquelas que se situavam nas proximidades dos rios Tejo, Douro e Mondego. A progressão desta doença para as regiões de Santarém e Tomar resultou numa quebra de produção estimada em cerca de dois terços, nos anos de 1854 a 1856 (Amaro, 1980).
Uma outra doença importante, provocada pelo ataque do insecto Viteus vitifolii, é a filoxera. Surgiu na Europa entre 1863 e 1868, e terá progredido em Portugal (ca. 1865), desde o Norte para quase todo o território. A solução encontrada foi a utilização de porta‑enxertos americanos, resistentes ao insecto.
A cultura da videira é também assolada por infecções de vírus, sendo os que causam maiores danos os nepovirus GFLV (vírus do urticado da videira) e o ArMV (Arabis mosaic virus), ambos responsáveis pela doença vírica da cepa, também conhecida como entrenó curto. Esta doença é exclusivamente transmitida por nemátodes, sendo o mais comum o Xiphinema diversicaudatum, presente na maioria dos solos. É controlada através da desinfecção do solo, utilizando nematicidas; porém, este procedimento é proibido em diversos países, tais como a Suíça e Itália, pela elevada toxicidade do químico utilizado (dicloropropeno). A alternativa encontrada foi o desenvolvimento de plantas transgénicas resistentes ao vírus.
A interacção planta‑patogéneo ocorre há centenas de anos, onde ambos os intrevenientes têm co‑evoluído. Como resultado, ao surgirem sintomas de doença nos tecidos da planta, estes não reflectem apenas o crescimento do patogéneo e consequente utilização dos nutrientes da planta, mas também uma resposta às capacidades ofensivas do patogéneo, através de uma miríade de barreiras defensivas da planta.
A primeira abordagem para solucionar os problemas com que os agricultores se depararam no caso da cultura da videira foi a utilização de fitossanitários. Esta abordagem apresenta diversos inconvenientes, nomeadamente os custos da aplicação, a contaminação de solos e aquíferos e os problemas para a saúde pública. Paralelamente à imediata utilização de fitossanitários, foram iniciados, por investigadores de diversos países, programas de melhoramento das castas europeias, visando o aumento da resistência a patogéneos.
O melhoramento da videira ocorre há mais de 100 anos, através de cruzamentos controlados entre castas que apresentam características de resistência, nomeadamente castas americanas e asiáticas, e castas elite. Na sequência, ocorre a selecção da descendência e a avaliação da resistência. Em Portugal, melhoramentos das castas Aragonez, Touriga Nacional e Vinhão foram conseguidos em 2001 e 2002, obtendo cerca de 21 plantas com resistência a fungos (Peixe et al., 2004).
O melhoramento através do cruzamento de castas apresenta vantagens indiscutíveis, nomeadamente no que se refere ao aumento da produção das culturas e à introdução de resistência a pragas e doenças. No entanto, é um processo moroso que pode contribuir para a redução da variabilidade genética e levar à perda de qualidades importantes, tais como a qualidade do mosto e do vinho.
Pelo facto de diversos genomas de plantas terem sido totalmente sequenciados e várias abordagens, tais como a genómica, proteómica e metabolómica, estarem mais acessíveis, o melhoramento de plantas através de técnicas de biologia molecular e transformação genética é agora uma realidade. A biotecnologia tem sido intensamente utilizada no melhoramento da videira, nos últimos vinte anos (Meredith, 2001). A engenharia genética parece surgir como uma técnica promissora no melhoramento de castas de videira, uma vez que oferece a possibilidade de introduzir resistência a doenças, mantendo a identidade e as características qualitativas de cultivares tidas como de elite (Colova‑Tsolova et al., 2001; Kikkert et al., 2001).
Diversos estudos têm sido desenvolvidos em Portugal, nomeadamente na introdução de resistência a vírus e fungos. A eliminação de viroses e a certificação de castas livres de vírus é uma das áreas de foco da biotecnologia. A eliminação de vírus, com o consequente aumento da produtividade das castas de Vinho Verde, foi obtida através do estabelecimento de culturas de meristemas in vitro, obtendo uma taxa de propagação vegetativa com elevado rendimento. As plantas obtidas foram testadas para os vírus GFLV e ArMV, revelando uma recuperação de 100% (Casal & Pais, 1990). Castas livres de vírus foram admitidas no programa de certificação da União Europeia, sendo que, actualmente, existem mais de 120 clones de 27 cultivares no processo de certificação (Boehm, 2005).
As espécies de videira resistentes a doenças apresentam capacidade de defesa contra agentes patogéneos, através da utilização de uma variedade de estratégias, nomeadamente através da resposta hipersensível. No entanto, a compreensão do mecanismo de defesa contra fungos é uma tarefa árdua. Cientistas, utilizando a engenharia genética, procuram compreender este mecanismo e, actualmente, foram isolados, da casta Regent, genes putativamente relacionados com o processo de defesa à infecção por fungos patogénicos, nomeadamente por Uncinula necator (Cardoso et al, 2003). Estes genes foram clonados em vectores de expressão utilizados para transformar cultivares sensíveis. Dispondo de protocolos de transformação genética de variedades de elite como a casta Trincadeira (Cardoso et al., 2003; Cardoso et al, 2004a; Cardoso et al, 2004b.), foi possível obter plantas transformadas com vectores de expressão contendo genes homólogos (Figura I). Estas plantas estão a ser avaliadas relativamente ao aumento da resistência a fungos.
Seguindo diferentes abordagens, o estudo dos mecanismos de resistência a fungos em videira tem vindo a ser efectuado, nomeadamente pela utilização da técnica de microarrays. Esta técnica permite a análise, em simultâneo, do perfil de expressão de milhares de genes, ou mesmo de genomas inteiros (Shena, 2002). A abordagem através de microarrays de cDNA foi utilizada para estudar a regulação basal da activação do mecanismo de resistência à infecção por fungos, dispondo‑se, neste momento, de diferentes genes homólogos putativamente relacionados com a resistência a Plasmopara viticola (Figueiredo et al., 2005). Actualmente, decorrem mais experiências com vista à confirmação dos resultados obtidos e sua interpretação no contexto da activação do mecanismo de resistência.