Origem da Videira
A família das Vitáceas compreende dez géneros de lianas tropicais, entre os quais o género Vitis Tourn., que inclui os subgéneros Muscadinia, representado por três espécies com 40 cromossomas, e Euvitis, de que se conhecem sessenta espécies com 38 cromossomas. As Vitáceas têm origem num passado muito anterior ao do Homem. O género tem sido citado, não sem reserva, desde perto do termo da Era Mesozóica, em fins do Cretácico superior, há cerca de 65 milhões de anos (Ma).
A evolução foi condicionada por acontecimentos à escala planetária, relacionados com a tectónica das placas (que modificaram profundamente a geografia através dos tempos), com a génese das cadeias de montanhas (barreiras orográficas que influenciaram a distribuição) e com flutuações das condições climáticas (responsáveis por avanços e recuos da área de distribuição).
Escasseiam os dados quanto aos últimos tempos do Cretácico europeu, correspondentes ao Maastrichtiano, idade de fósseis referidos como Vitis balbiana, representados em colecções que existiram na Sorbonne, em Paris. A pertença à Vitis não parece suficientemente comprovada.
Além disso, a análise antiga, mas exigente, de Schimper (1891: 578‑582) põe em causa macro‑restos do Cretácico atribuídos aos géneros Cissus, Cissites e Ampelophyllum, visto serem possíveis confusões com outras famílias, por insuficiência do material disponível.
Entretanto, estava em evolução um fenómeno de escala gigantesca: a abertura do Atlântico. Pouco a pouco, ia ultrapassando em importância o antigo Mar de Tétis, de que o Mediterrâneo constitui, de certo modo, um vestígio reduzido. Então, era ainda amplo o contacto entre as partes do super‑continente de que resultaram a Eurásia e a América do Norte.
Onde hoje é Portugal, dados paleontológicos abundantes obtidos entre Aveiro e Taveiro (a SE de Coimbra) indicam áreas alagadas e ambientes subtropicais. Ocorrem restos de plantas, a par de moluscos, peixes, tartarugas, crocodilos, alguns dos últimos dinossauros (muitos de porte muito pequeno), mamíferos, etc.. Esses dados apontam para ambientes semelhantes aos de Everglades, na Florida. Em tais contextos, não surpreende a ocorrência de Vitáceas na Europa, que, ao menos em parte, poderiam ser comuns a Vitáceas «pré‑Norte‑americanas».
Facto indiscutível é a degradação climática generalizada do fim do Cretácico, com significativa descida das temperaturas. As espécies tropicais ou subtropicais podem ter sucumbido. Quando muito, poderiam eventualmente sobreviver em refúgios de clima mais ameno ou graças a migrações em direcção a Sul, o que seria de esperar, a menos que se interpusessem barreiras intransponíveis: braços de mar, áreas desérticas ou cadeias de montanhas.
Certas circunstâncias permitindo a migração podem ter facilitado mais a sobrevivência de espécies na vasta área continental correspondente à América do Norte, sobretudo em comparação com o que veio a ser a Europa – que estava (e está) limitada por mar ao Sul.
Tal explicaria uma taxa de sobrevivência americana mais elevada, com a manutenção de espécies pré‑existentes, sem contrapartida europeia; situações que se devem ter mantido ao longo dos tempos geológicos e, em particular, no decurso das glaciações quaternárias. O muito maior número de espécies actuais de Vitis na América do Norte (e, em menor grau, na Eurásia Oriental) dá testemunho de processos como os acima referidos e é compatível com melhores condições de migração e consequente sobrevivência, em contraste com maior peso das extinções na Eurásia Ocidental.
Condições climáticas menos favoráveis constituíram factor fundamental em numerosas extinções, com realce para a dos dinossauros não avianos, favorecendo animais de temperatura corporal constante: aves e mamíferos. Estes cenários mantiveram‑se no início da Era Cenozóica (ou Terciária), atenuando‑se em fins do Paleocénico (Tanetiano, há cerca de 55 Ma); o que deve ter permitido nova presença de Vitis. É o caso de fósseis, que se tem admitido serem os mais antigos representantes, provenientes da Bacia de Paris, referidos desde o séc. XIX (Fig. 1).
Segundo Gignoux (1960):
– p. 513 – «Landénien: la transgression des sables de Bracheux» [formou‑se um golfo que ultrapassava, para o interior, a área de Reims].
– p. 514 – «…la flore, permettent de conclure à un climat, sinon tropical… mais au moins tempéré chaud…».
– p. 515 – «Sur les bords du golfe se sont déposées des formations continentales: les exemples les plus célèbres se voient dans la région de Reims; c’est le calcaire lacustre de Rilly, (…): des sources calcaires ont déposé sur la rive de ce lac les fameux travertins de Sézanne, avec des insectes, des feuilles et des fleurs moulées dans leurs moindres détails (Sassafras, Magnolias, Lierres [= hera], Vignes)».
Outra referência consta do tratado de Boule & Piveteau (1935: 521‑522, fig. 863 R):
– «Vitis sezannensis, Vigne paléocène de Sézanne, près de Reims».
Foi admitido (Amaral, 1994: 27) que esta forma de Vitis, também identificada na Alemanha e na Suíça, manifesta afinidades com outras do SE dos Estados Unidos, o que, como se viu, tem lógica.
Fósseis muito semelhantes às Vitáceas actuais foram observados em amplas áreas do Hemisfério Norte. Na Gronelândia há provas seguras da existência de Vitis terciárias, documentadas por grainhas, V. olriki Heer e V. arctica Heer (Schimper, 1891: 581).
A expansão aproveitou condições climáticas favoráveis prevalecentes, subtropicais a tropicais, no imenso super‑continente que antecedeu a conclusão da abertura do Atlântico Norte. Estas possibilidades de expansão, que a Vitis pode ter aproveitado, foram claramente evidenciadas no que concerne a mamíferos. Com efeito, foram reconhecidos episódios de migração, em fins do Paleocénico e até ao Eocénico inferior, em parte sobreponíveis no tempo (Escarguel, 1999: 278):
1.º – ca. 56,5 Ma, a partir da Ásia para a Europa e América do Norte;
2.º – ca. 56 Ma, da América do Norte (e da Ásia?) para a Europa;
3.º – ca. 55,5 Ma, da Europa para a América do Norte (note‑se que a jazida de Silveirinha, sítio tratado a seguir, seria de ca. 54,1 Ma, de acordo com a metodologia seguida por este autor) (Escarguel, ibidem).
Entretanto, prosseguia a inexorável abertura do Atlântico. As comunicações terrestres com a «pré‑América do Norte» cessaram pouco depois.
A prova descoberta em Portugal é da maior importância: foi encontrada Vitis em Silveirinha, Baixo Mondego. Data do Eocénico basal (Antunes, 2003; Pais, 2003), certamente há pouco mais de 50 Ma. Não surpreende.
São de esperar afinidades entre a vegetação do que hoje é a Europa Ocidental e a da «pré‑América do Norte», à semelhança do que se verifica com a fauna, de que é
exemplo notório a presença, em Silveirinha, de hiracotérios – possíveis antepassados remotos do cavalo, comuns a jazidas norte‑americanas. Reinava um clima subtropical.
A ligação terrestre interrompeu‑se em seguida. Para sempre. A evolução da vida terrestre passou a ser independente na Eurásia e na América do Norte, apenas com excepções limitadas, mas importantes, de longas migrações por via asiática.
No ocidente europeu, as condições climáticas continuaram a melhorar no decurso do Eocénico, passando a tropicais. Surgem vestígios atribuídos a Vitis ampelophyllum nos arredores de Verona, Itália (Amaral, idem:27).
Trata‑se de ocorrências célebres, ricas de peixes e outros fósseis do final do Eocénico inferior ou do início do Eocénico médio (Luteciano inferior, ca. 49 Ma). Ocorrem folhas muito bem conservadas atribuídas a Ampelophyllum noeticum Massalongo, espécie referida à família Ampelideae, a que pertence a videira (Sorbini, 1983: Tav. 105).
Porém, sobreveio nova degradação no Eocénico superior (entre 43 e 34 Ma), acentuada no Período seguinte, o Oligocénico, sobretudo no Oligocénico inferior, a partir de 34 Ma. Restos, sobretudo grainhas atribuíveis certamente a Vitis, são há muito conhecidos em jazidas terciárias, embora a cronologia não esteja indicada com rigor (Schimper, 1891: 581‑582).
Alguma melhoria climática no Oligocénico superior (ca. 27 a 23,5 Ma) terá permitido a colonização por Vitis praevinifera, encontrada em Ardèche, França (Amaral, idem: 28). Cabe referir também a presença de folhas de Vitis teutonica A. Brong. (próxima de V. vulpina) no Oligocénico superior de Salzhausen, Alemanha; seria a espécie com distribuição mais ampla e maior longevidade, pois subsistiu até ao Miocénico Superior (Schimper, 1891: 581). Há grainhas no Oligocénico de Bovey Tracy, Inglaterra (ibidem).
Voltando a Portugal, o género Vitis está representado na parte superior do Miocénico Médio (ca. 13 a 14 Ma), como mostram grainhas de Póvoa de Santarém (Pais, 1978). Este dado foi retomado em publicações onde foram analisados aspectos paleo‑ecológicos e paleo‑climáticos (Pais, 1979, 1986).
De idade próxima da de Póvoa de Santarém, a «Unidad intermedia» do Miocénico Médio da Bacia de Madrid deu, também, uma Vitacea, Ampelopsis cf. malvae‑formis – cf. Marrón et al. (2004: 203).
Não há elementos acerca da eventual presença, aliás possível, de Vitis no Pliocénico, em que se conhecem associações de fósseis vegetais, nem sempre bem datadas. Não está citado em Rio Maior, donde provêm associações de vegetais particularmente ricas, cuja idade tem sido atribuída ao Pliocénico e ao Plistocénico. O mesmo se pode dizer de diversas jazidas quaternárias.
Na Eurásia, a oeste dos Montes Altai, surgiu uma só espécie, Vitis vinifera L., da qual derivaram as subespécies V. (E.) vinifera silvestris, V. (E.) vinifera caucasica e V. (E.) vinifera sativa. Ainda segundo Schimper (1891: 582), «les restes fossiles quaternaires de V. vinifera L. sont des survivants de la flore tertiaire qui se relient à la flore actuelle.». Há vestígios de espécies pré‑históricas em França, Suíça, Alemanha e Itália (Amaral, 1992).
As glaciações quaternárias tiveram enorme importância. Foram acompanhadas por modificações climáticas e paleogeográficas que condicionaram toda a vida. Três momentos estão ilustrados nas figuras seguintes, com sucessivas paleogeografias referentes a dois episódios glaciários e a um interglaciário – mostrando calotes de gelo continentais (inlandsis) e de montanha, a branco; terras emersas não cobertas por gelos permanentes, a vermelho; domínio marinho, a azul; deslocações de animais e do coberto vegetal, por setas (Fig. 3, fig. 4, fig. 5).
As videiras quase desapareceram da Europa Central durante a glaciação de Riss (~250 a 120 mil anos), tendo apenas subsistido em refúgios geográficos onde eram mais amenas as condições climáticas ou microclimáticas. No entanto, «Il est admissible que ceux‑ci [refúgios] correspondent au pied de montagnes qui bordent la mer Mediterranée: Pyrenées, Cévennes, Alpes, Balkans, Caucase, etc… Mais il est très hasardeux de rattacher les vignes cultivées à ces refuges.» (Branas, 1974: 61).
No último período interglaciar (Riss‑Würm, ~120.000 a 100.000 anos), a espécie expandiu‑se de novo. Isto repetiu‑se após a última glaciação, especialmente na Transcaucásia, região protegida pelas montanhas do Cáucaso. Houve nova expansão, com a melhoria climática após a glaciação de Würm, há uns 10.000 anos, com migrações para a Mesopotâmia, Norte de África e ilhas do Mediterrâneo. O Homo sapiens do Paleolítico não era recolector das uvas azedas e pequenas da videira selvagem, Vitis (E.) vinifera silvestris, como sugere Amaral (1994: 29).
Só os homens do Neolítico reconheceram o seu valor alimentar. Branas (1974: 62) refere concentrações de videiras selvagens na Europa ocidental, Jugoslávia, África do Norte e Rússia (Crimeia, Caucásia, Taschkent e oásis do Turquemenistão). Também Negrul (1959, citado por Turcovic, 1961: 84) delimita a área originária da V. silvestris pela do Mediterrâneo, prolongando‑se através da região do Mar Negro até à região transcaucásica e aos Montes Kopet‑Dag no Turquemenistão e no Irão (monte Ararat).
Segundo Johnson (1999: 17), «As grainhas mais antigas, provenientes de videiras cultivadas, descobertas até agora e datadas recorrendo ao método de carbono – e pelo menos aceites nessa qualidade pelos seus descobridores – foram encontradas na Geórgia, e pertencem ao período que medeia entre os anos 7000‑5000 a. C.)». Também, provavelmente, conheceram o vinho, como indicam cântaros de barro onde as uvas fermentavam espontaneamente.
Os primeiros recipientes, denominados kwevri, foram encontrados na Transcaucásia (6000 a. C.). Os Gregos chamaram‑lhes phitos e os Romanos dolium. Mantiveram‑se até à actualidade sob a forma de talhas ou ânforas. Fósseis de Vitis foram encontrados em quase todos os países do Centro e Sul da Europa. A esta fase do Neolítico se refere provavelmente a Bíblia, no episódio do Dilúvio. Bíblia que é fonte de inúmeras referências à videira, por exemplo: «Noé que era agricultor foi o primeiro a plantar videiras» (Génesis, I, 9.20).
Johnson (1989: 17) adianta uma explicação quanto à passagem da videira selvagem a um produto da civilização. Como a silvestris tem plantas masculinas e plantas femininas (dióicas), o Homem seleccionou só as femininas para cultivo, já que as masculinas não dão fruto. Quando reconheceram que a monocultura feminina também não frutificava, começaram a seleccionar plantas de Vitis sativa (variedades hermafroditas de silvestris com aptidão para a cultura agrícola). Deste modo, começaram a evoluir as castas de Vitis vinifera. Segundo Turkovic (1961: 81, 82), a subespécie Vitis vinifera ssp. sativa distingue‑se bem da ssp. silvestris porque esta é dióica. Além disso, distinguem‑se pela forma e dimensão das grainhas, mais espessas e curtas na silvestris, onde o seio peciolar é aberto. Ainda na silvestris, é reduzida a compactação do cacho; os bagos são redondos, azuis e só muito raramente brancos; e os sarmentos muito finos, com nós pouco salientes.
Ainda segundo Branas (1974: 63), há semelhança morfológica das videiras selvagens com as castas cultivadas na região: no caso do Reno, com Pinot; no Vale do Nevretva (Jugoslávia), com Kadarka, Blatina, etc.; bem como com as castas da região do Cáucaso e das margens do Mar Cáspio.
Em Portugal verificou‑se, por métodos de taxonomia numérica, que a casta regional Marufo apresenta estreita semelhança com plantas da população silvestre de Castelo Branco (Dias, 2004: 6). A existência de Vitis silvestris em Espanha foi referida por Rubio (1999).
Diego Riera e Michael Walker, da Universidade de Murcia (1989: 205‑237, in Palaeobotany and Palynology), referem Clemente (1807: 143‑153, 171‑173) que já distingiu 5 diferentes biótipos da sub‑espécie. María‑José Chiapusso, da Universidade do País Basco (Vitoria‑Gasteiz), escreve: “A existência mais antiga de videiras selvagens conhecida em Espanha derivou do Quaternário. Na Gran Dolina da Serra de Antepuerca (Burgos) foi encontrado pólen (Garcia‑Anton, 1989) considerado de 780.000 a. C.. Na Tubera de Padul (Granada) também foi encontrado pólen de Vitis, dificilmente datável quanto à origem (Florschütz et al. 1971), mas entretanto atribuído à época quente Eem (Pré‑Würm) da última fase glaciária (Würm/Weichsel). Em diferentes localidades há provas da Vitis: madeira carbonizada em Abric Romani (Anoia, Catalunha), 70.000 B. P. (Burjachs, Julia 1994, Ethel 2002) e (Buxó, Piqué 2008); grainhas fossilizadas em Mediona (Penedès, Catalunha); e nas grutas de Los Mallaetes (Barx) foram encontrado fósseis de 30.000 B.P. (Dupré 1988) “… Desde o início do Holocénico (após a última glaciação), há inúmeras provas da existência da Vitis silvestris…”. Iraiate Chiapusso não conhece referências concretas da implantação da Vitis silvestris na Ibéria no Neolítico, mas refere a existência de jarros campaniformes com resíduos alcoólicos do tipo da cerveja encontrados em La Sima (Mino de Medinaceli, Soria, por Rojo et al., 2006).
Diego Rivera e Michael Walker, da Universidade de Murcia (1989: 205‑237, in Review of Palaeobotany and Palynology), comprovaram detalhadamente a existência da Vitis silvestris na Península Ibérica. Além das já referidas localidades, referem uma grainha de Vitis identificada por eles, de 10750 B.P., encontrada na Cueva del Caballo (Cartagena), Murcia, e ainda pólen de 4800 B. P., em El Prado de Jumilla, perto de Murcia, e grainhas de Vitis de 4500‑4000 B. P., na Cueva del Calor, perto de Cehegin, além de fragmentos de um tronco de videira da mesma época, na Cueva del Monte, perto da Rambla de Libilla, em Murcia.