A Propagação de Material Vitícola em Portugal
Augusto Peixe (Universidade de Évora), Jorge Böhm.
Como liana que é, nunca foi difícil conseguir a propagação vegetativa da videira. Desde a mergulhia ao enraizamento de estacas lenhosas no local definitivo, técnicas de propagação utilizadas na Vitis vinifera antes da invasão da filoxera, até às enxertias de incrustação de topo ou de fenda inglesa, sobre porta‑enxertos híbridos, que caracterizaram a propagação da espécie no período pós‑filoxera, a todas elas a videira se adaptou sem problemas de maior.
Mas se a grande capacidade de adaptação da videira aos vários processos de propagação vegetativa pôde garantir a sua continuidade como cultura, a verdade é que o aparecimento da filoxera modificou significativamente as técnicas culturais.
Para a instalação das novas vinhas, passaram a instalar‑se, no primeiro ano, os porta‑enxertos híbridos no local definitivo, sendo, no segundo ano, efectuada a enxertia, com recurso a garfos da casta de Vitis vinifera desejada.
Esta absoluta necessidade de utilizar porta‑enxertos resistentes à filoxera contribuiu para o aparecimento de uma nova actividade económica, o viveirismo vitícola. Muitas foram as empresas que em Portugal floresceram pela exploração desta actividade durante todo o Séc. XX, na sua maioria sedeadas na região do Pó/Bombarral, beneficiando das excelentes condições edafo‑climáticas da região para aí fazerem os seus viveiros de bacelo barbado.
Não se pense, no entanto, que a enxertia da espécie apenas se iniciou com o advento da filoxera. Muito antes disso, já era utilizada na videira como forma de corrigir o vigor ou de substituição de castas.
Sobre esta técnica, no seu Tratado Theorico e Prático da Agricultura das Vinhas, diz Gyrão, A. (1822), a dado passo: «…he esta huma parte da agricultura das vinhas interessantissima, e curiosissima; porque por via della se melhorão as castas defeituosas, tornão‑se optimas as boas, e fructiferas as estéreis…».
Quase duzentos anos depois, esta potencialidade da enxertia voltou a ser explorada no nosso país. Nos finais da década de 80 e até meados dos anos 90, devido a uma capacidade instalada de produção de vinhos brancos muito superior à procura, recorreu‑se novamente a ela como forma de substituir castas bancas, em plena produção, por castas tintas.
É interessante verificar que, neste caso, se recorreu a uma forma pouco comum de enxertia da videira. Foi utilizada a enxertia de gomo destacado, efectuada directamente sobre o tronco de plantas em plena produção.
Sobre esta forma de enxertar a videira, dizia Alarte, V. (1712), o seguinte: «…o terceiro modo que trazem os authores a que chamão de gema, eu o tenho por ridículo… dizem que quando a vide engrossa o botão & está para arrebentar, se tira o botão subtilmente com hum canivete, de sorte que leve madeira da vide, & na outra em que querem meter esta gema abrem hum buraco do mesmo tamanho desta gema…».
Mas a verdade é que as enxertias de gomo destacado, a que nos referimos, para a substituição de castas bancas por tintas, foram executadas com grande sucesso por experientes equipas de enxertadores, principalmente de origem francesa, permitindo, além do mais, manter parte da capacidade produtiva da planta no ano de execução da enxertia.
Foi também a partir dos meados da década de 80 que o aumento do preço da mão‑de‑obra, associado a um incremento significativo das áreas a plantar e a uma redução da oferta de trabalho especializado de enxertia, conduziu a que se sentisse a necessidade de substituir as técnicas clássicas de enxertia da vinha no local definitivo, por uma produção em larga escala de plantas já enxertadas.
Surge assim no mercado o bacelo enxertado, cuja produção se baseia numa técnica de enxertia de mesa. Trata‑se de uma enxertia mecânica, associada a um processo de forçagem (estratificação) para uma rápida formação da união de enxertia e onde a utilização das máquinas de enxertia Ómega se revelam como as mais adequadas ao processo.
Em Portugal, ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, não foram os viveiristas vitícolas tradicionais que desenvolveram a tecnologia do bacelo enxertado. O desenvolvimento da técnica ficou a dever‑se a novas empresas do sector, sedeadas principalmente nas regiões do Alentejo e do Douro.
Mas não foi fácil às plantas enxertadas ganhar lugar de relevo na plantação de vinhas novas. Alguma falta de cuidado na preparação do solo e na adubação de fundo, associada à ausência de rega da vinha, foram factores que em muito dificultaram a vida a estas jovens plantas, que tinham que instalar o seu sistema radicular ao mesmo tempo que se lhes pedia um vigoroso desenvolvimento da parte aérea, para poderem ser conduzidas ao 1.º arame logo no ano da instalação.
Para além disso, a falta de habituação dos viticultores em trabalhar com Viniferas logo no ano de instalação da vinha levou a alguma negligência, tanto nos tratamentos fitossanitários, como na condução da jovem planta durante esse ano, o que, conjuntamente com os factores anteriormente referidos, conduziu a alguma desconfiança relativamente a estas novas plantas.
Para a generalização que o bacelo enxertado actualmente conhece na instalação de vinhas novas, muito acabaram por contribuir, por um lado, a consciencialização da importância da rega na manutenção interanual da capacidade produtiva da planta e, por outro, o aparecimento das máquinas de plantação, desenhadas especificamente para o trabalho com este tipo de plantas.
E se o bacelo enxertado alterou significativamente a forma de plantar a vinha, ele teve também um significativo impacto na retancha das mesmas. Tradicionalmente efectuada com recurso a nova enxertia, nos casos em que esta não pegava, ou com plantação de novo bacelo barbado, nos casos em que este definhava, as retanchas tradicionais têm sido gradualmente substituídas por plantas de cartonagem.
Ao ser produzidas em jiffy‑pots e plantadas com raiz protegida, estas plantas têm uma maior capacidade de competir com as plantas já instaladas no terreno, reduzindo assim os efeitos negativos a que estavam sujeitas as retanchas tradicionais.
Durante a última metade do Séc. XX, muita atenção foi dada por toda a Europa à qualidade do material vegetativo em Vitis spp. e os programas de selecção clonal, tanto de porta‑enxertos como de garfos, deram os seus primeiros frutos na maioria dos países vitícolas. A tecnologia de diagnóstico de vírus evoluiu significativamente, dando um novo impulso à selecção sanitária em Vitis vinifera e, para isso, muito contribuíram, tanto a enxertia em verde, que possibilitou a produção durante todo o ano de plantas para indexagem, como o aparecimento dos testes serológicos.
Infelizmente, em Portugal, só em 1991 se publica legislação sobre a produção, certificação e comercialização de materiais de viveiros vitícolas, situação que comprometeu gravemente grande parte da reestruturação vitivinícola que desde os anos 80 vinha sendo efectuada um pouco por todo o país, uma vez que sobre porta‑enxertos certificados foram enxertados garfos de qualidade duvidosa.
Já nos finais do Séc. XX, também a videira não fugiu ao advento da biotecnologia vegetal, que disponibilizou técnicas com grande potencialidade de utilização na multiplicação e no melhoramento genético da espécie. De entre estas, são de salientar, por um lado, a cultura de ápices meristemáticos, que, associada à termoterapia, abriu novos horizontes na limpeza sanitária de clones infectados pelos mais diversos vírus, e, por outro, a indução de embriogénese somática, que conduziu à produção de material capaz de ser utilizado em processos de transformação genética.